Documentário resgata arte de fazer barcos de pesca sem prego ou projeto

“Saber fazer artesanal” resgata memórias e habilidades dos mestres carpinteiros que se mantêm na atividade, honrando a tradição trazida pelos imigrantes açorianos

Desde antes da fundação do município, a arte de fabricar barcos já fazia parte da vida em Navegantes. No bairro São Pedro, às margens do rio Itajaí-açu, os primeiros habitantes encontraram na pesca o meio de sustento e, para isso, precisavam construir suas próprias embarcações para pescar. O conhecimento dessa carpintaria naval, inicialmente realizada apenas com madeira, foi passado de geração em geração, mas hoje corre o risco de se perder. Essa história é contada no documentário “Saber Fazer Artesanal”, do produtor cultural Ricardo Testoni.


“A gente mora aqui no Pontal faz tempo e observava que os construtores artesanais de barcos já estavam com idade avançada, e este saber, transmitido de forma oral, de pai pra filho, corria o risco de se perder se não fosse registrado”, comenta Ricardo. As filmagens começaram em fevereiro, em meio ao surto de dengue que afetou muitos dos entrevistados, inclusive os realizadores. Felizmente, todos se recuperaram e puderam assistir ao vídeo, que foi exibido para a comunidade no início do mês e também nas escolas da rede pública. O documentário está disponível no YouTube e conta com recursos de acessibilidade, como audiodescrição.


Quem conduz as entrevistas com os mestres é a professora aposentada Vilma Rebello Mafra, 75, que conhece bem a atividade, já que seu marido vem de uma família de pescadores. Ela conta que, no início da colonização, os imigrantes açorianos aprenderam a técnica de fazer canoas com os indígenas e trouxeram seus próprios conhecimentos de construção de pequenos barcos pesqueiros. O ofício é conhecido como carpintaria da ribeira porque é realizado na beira do rio.

“Os primeiros navegantinos, no local onde ergueram suas casas com teto de palha e chão batido, já tinham no fundo do quintal o esqueleto, a armação de uma pequena embarcação”, revela Vilma. Naquela época, sem acesso a pregos de metal, os carpinteiros produziam pinos de madeira, abundante na região, para emendar as tábuas, aperfeiçoando a técnica que também era utilizada na construção das casas dos pescadores.

Essa tradição foi mantida pelo veterano Francisco Manoel Patrício, 85 anos, que construiu seis casas de madeira para os filhos, garantindo que só saíssem de casa quando tivessem uma nova moradia. “Meus filhos só saíam da minha casa quando eu tivesse acabado a casa deles. Era no tempo do serrote, enxó, a furadeira era a pua. Não é que nem agora, tudo elétrico”, compara Francisco. Ele começou na lida aos 15 anos, mesma idade de Mario Domingues Marques, o Cezinha, que aprendeu o ofício com o sogro e o transmitiu ao filho.

“Fazer um barco que está lá fora no mar com 10 homens em cima e boiar é uma obra de arte. Para fazer um barco boiar tem que ser artista”, orgulha-se Cezinha. Para ele, o maior momento de satisfação é quando, após meses de trabalho, o barco fica pronto e sai para a primeira pescaria. “Quando o cara chega satisfeito, com o barco cheio de peixe, aí ele fica todo prosa. Ali ele passa a ser um dengo-dengo mesmo!”, brinca, referindo-se ao apelido dos nascidos em Navegantes.

Img Falta de cursos técnicos para construção naval resulta em escassez de mão de obra

Atividade vive escassez de mão de obra

O documentário levanta uma questão crucial para a continuidade dessa tradição: a falta de cursos técnicos para capacitar novos profissionais. A escassez de mão de obra qualificada na carpintaria naval é uma ameaça real, mesmo com a demanda por pescados em alta.


José Olavo Coelho, 79, construtor naval há 60 anos, lamenta que muitos que começaram com ele já faleceram e que seus descendentes não seguiram na profissão. “Recebo muitos estagiários de engenharia naval, que aprendem a fazer projetos, mas não têm a expertise de um carpinteiro artesanal, que sabe construir um barco perfeito sem planta”, comenta. Segundo ele, enquanto o mundo existir, haverá necessidade de barcos de pesca para capturar o peixe, e a construção naval artesanal não pode desaparecer.

Vilma lembra ainda que o saber artesanal da carpintaria da ribeira não se resume à construção de barcos, mas inclui todo o processo da pesca, como fabricar redes, cestos e ler os sinais da natureza. “O pescador olhava para o céu e dizia: ‘hoje ninguém vai sair porque, na barra do tempo, o sol não está com a cor certa, vai dar tempestade’. Eles eram sábios!”, conclui.


Fotos: Reprodução documentário “Saber fazer artesanal”